sábado, 2 de novembro de 2013

Um Amigo de há 20 anos

Conforme prometido, aqui vai a 2ªestorinha:

2ª estorinha

Era uma vez o Alberto. Homem de iniciativa. Toda a vida que viveu até aos 55, comemorados há 2 meses, tinham sido de trabalho. Duro, muito, mas proveitoso. Sempre metido no trânsito, em reuniões, em noites de computador e de laboratório. Pensa, faz, oferece e vende, aplica, põe a funcionar. A chamada “realização profissional” no seu pleno. O dia tem 24 horas, não mais (as tais convenções horárias) e o trabalho que foi necessário desenvolver foi mais do que muito, diga-se que com agrado. O Alberto fazia o que gostava de fazer, e quando é assim o trabalho, muito e duro que seja, leva-se com facilidade. O que não significa que não canse e que às tantas, muitos anos passados sem fim de semana e muitas vezes sem feriados e sem festas, o Alberto não se sentisse farto. Farto do trabalho, farto do computador, farto das reuniões, e dos projetos, e dos clientes, e daquela parafernália toda com que era obrigado a lidar diariamente. E que fez o Alberto, homem de iniciativa e sempre de ideias “pra frentex” ? Mandou o trabalho, aquele, às malvas, mandou os sócios às urtigas e os clientes a um sítio que o Alberto esqueceu de indicar no diário que escreveu. Uma falha que se desculpa. Mudar de vida foi a decisão. Vamos para fora, anunciou à família. Vamos para longe do ruído, dos fumos, do ar condicionado, do trânsito,... de tudo o que lhe tinha enchido a cabeça durante muitos anos. E foram ! Serra da Estrela, ali perto, lugar magnífico, ar cheirando a limpo era coisa que nem sabia que existia, ribeirinho ao pé... vamos nessa, um viveirito de trutas. O Pai até era da zona, amigo do presidente da junta e compadre do presidente da câmara, foi fácil arranjar o espaço para o viveiro, tal como foi fácil arranjar o espaço para um restaurante a partir de casa de canteiros, antiga, abandonada, onde a grande especialidade iria ser, naturalmente, as trutas do seu viveiro.
 No estudo que fez sobre como criar e tratar trutas passou por França e as “Truites au Bleu” ficaram-lhe no goto e na memória. Decisão de Especialidade da casa, restaurante a funcionar. Localização parasidíaca. Acesso por caminho antigo, arranjado para manter o rústico, saibro por cima, a 500 metros do alcatrão da estrada nacional. Parque de estacionamento sem qualquer dificuldade. Começou a ser conhecido. Primeiro aos fins de semana o pessoal da Covilhã, de Manteigas e de Seia, tudo perto, tinham de fazer espera à porta. Depois até durante a semana. O êxito estava à vista. O Alberto e a Mulher, mais um Filho jovem e com o “sangue na guelra”, faziam tudo. Cozinhavam, atendiam, punham as mesas, lavavam, limpavam, arrumavam, tratavam do viveiro. Um sorriso permanente. A coisa corria. Não conseguiam lucros, mas haja Deus, o reconhecimento das autoridades, os prémios que iam recebendo, da Câmara, da Junta, do Turismo. Começaram até a ser visitados pelas televisões e pelos jornais, primeiro os locais, logo a seguir os nacionais. As revistas do jet 7, os especialistas em gastronomia, todos lá foram e todos disseram que havia ali um milagre, pela iniciativa, pela novidade, pela organização montada, pelo que significava de desenvolvimento para a região. Lá por fora já se falava no Alberto. Um Inverno particularmente chuvoso, meses de frio que a lareira mal disfarçava e que o caminho rústico, lindo até então, não aguentou. Abriu buracos, o saibro foi ribeiro abaixo com chuva dias a fio e no aperto do frio da neve que caiu e acabou fazendo gelo.  Foram meses para esquecer. Nem os fins de semana salvaram os gastos. Na Primavera, como sempre, regularmente e conforme a Mãe Natureza manda, o Sol regressou, o Céu limpou. A neve que havia caído desapareceu. Lá estavam os 500 metros desde o alcatrão até ao Alberto, praticamente intransponíveis. Mais um fim de semana em que os clientes apareceram a conta gotas. Meia dúzia deles, nem mais que 7, ainda há 1 ano eram centenas à espera, na sala de entrada, no parque de estacionamento, nos caminhos à volta gozando as vistas e o ar. Como sempre o Alberto saiu da cozinha e veio cumprimentar os clientes, dizer uma graça, agradecer a preferência, distribuir um carinho que todos recebiam com agrado. A queixa começou a ser constante acerca da aventura que representava o percurso, outrora bem simpático, dos 500 metros do acesso ao restaurante. Surpresa magnífica. Naquele Domingo quando o Alberto se aproximou da mesa 3... Armando... mas és mesmo tu, grande e demorado abraço. Mais do que um abraço, foi xi-coração dos antigos.  Estás na mesma, há quantos anos... conta, como apareceste aqui ? Ouvi falar, não sabia que eras tu, que boa surpresa, amigos há 20 anos e aqui nos encontramos tão por acaso, o mundo é mesmo pequeno, vê lá tu... já tenho netos... então e tu, pelo que vejo estás na maior, começas a ser conhecido por toda a parte, isto que tu aqui fizeste é um milagre, aqui no “fim deste mundo” da serra, sabes, tens é que arranjar o caminho, assim como está é uma chatice ! mas olha gostei de te ver, vais conseguir aqui uma fortuna... isto é um achado extraordinário... um milagre... é o que te digo. Vai outro abraço. Se precisares de alguma coisa diz, como sabes dou-me muito bem com o Cavaco e com o presidente da Fundação Gastronómica Nacional que é o braço direito da Câmara de Turismo Americano e eu trato por tu o presidente, almoço todas as semanas com ele, diz-me o que precisas. Bom, pelo que vês eu só preciso de arranjar aqui o caminho até à estrada, o resto a gente desenrasca, mas o caminho preciso de umas pazadas de saibro e a coisa está mal... o Inverno levou-me o pouco que começava a chegar e não consigo que a junta ou a câmara me dê uma ajuda, sabes, não tenho o cartão ! Alberto, conta comigo, só que não me parece que tu saibas o que queres, para valorizar mesmo as tuas magníficas trutas só vale a pena pensar numa auto-estrada, e isso é canja, eu trato-te disso de caras, ou não fossemos amigos há 20 anos. Não..., espera, isso não interessa, qualquer carrada de saibro resolve-me o problema. Nem penses, uma auto-estrada, 4 faixas para cada lado, já viste como fica o teu restaurante, grande néon a anunciar “ALBERTO”... é pá, tu és famoso, caraças... uma auto-estrada, eu trato-te disso, é a minha especialidade, não custa nada e é para um amigão de tantos anos, espera e verás. Passado um ano a auto-estrada está construída. Foi a câmara que construiu em parceria com a M&E. No final daqueles extraordinários 500 metros de auto-estrada há um grande restaurante. Placards por toda a Serra (fez parte do contrato) com setas a indicar o local. Um Néon enorme anunciando “Armando o Rei das Trutas”. O Alberto foi à Câmara saber o que se tinha passado. Amigo Alberto, sempre a considerá-lo, então diga la´em que posso ajudá-lo, bem sabe que o seu Pai ainda é meu compadre, esteja à vontade, áh a auto-estrada nova, pois, teve que fazer-se para o outro lado da serra, sabe como é, isto não é como nós queremos, o maldito PDM obrigou a ser assim, mas deixe lá que havemos de lhe arranjar uma solução, pois claro fomos eleitos pelo povo e não nos esquecemos disso, e o Alberto... o que fez cá pela terrinha ninguém esquece, olhe que irei nomeá-lo para uma medalha, não este ano não que já está tudo decidido, mas para o ano não me esquecerei... pode ter a certeza, pois adeus, volte sempre, terei sempre muito gosto em lhe ser útil, pois claro, não me esqueço que o seu Pai ainda é meu compadre... Áh o Dr. Armando..., pois... sabe, é que ele é muito amigo do Sr Ministro, até se tratam por tu e tudo... tem sido uma vantagem muito grande cá para a terra...

O Armando, depois da inauguração do Restaurante novo onde esteve acompanhado pelo presidente da Comissão Europeia que lhe deu a honra subida de estar presente, nunca mais voltou ao sítio.

O presidente da câmara foi a deputado europeu.

O restaurante do Alberto fechou e está em ruinas.

As trutas morreram. Agora são importadas de França.

FIM

JPS-26Out2013 
 

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